segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Paraíso


Eram apenas crianças, mas nunca iriam se esquecer do que viram naquele dia. Do alto de seus 10 ou 11 anos, todas se amontoavam nas janelas de uma Kombi antiga a procura de espaço, ávidas por detalhes com os quais jamais ousaram sonhar ou descrever.

Quando o tio de uma delas anunciou que viajaria a trabalho na manhã seguinte, os olhos de todas brilharam, em uma suplica silenciosa capaz de tocar qualquer coração. Queriam ir junto, desbravar o desconhecido, e foi impossível negá-las qualquer coisa. Pouco tempo depois, separadas algumas roupas e alimentos, esperaram insones pela partida, quando seguiram juntas, confinados entre caixotes, sacas, embalagens e flores.

Vinham de uma terra muito distante, onde reinavam árvores centenárias, campos sem fim e o clima fresco da natureza. E a ilusão de enfim conhecerem uma cidade grande tornou-se real sem aviso, quando o tio fez-se ouvir sem rodeios:


"Chegamos".

Houve um momento de suspense e, subitamente, euforia. Meninos e meninas não sabiam o que olhar primeiro. Eram carros que nunca tinham visto, prédios altos por demais e mais água do que jamais pensaram existir. O mar era inédito para aquelas crianças, assim como mergulho do sol nas águas e a brisa que soprava em sentido à praia. Estavam no paraíso.

De tudo que viram, o que mais as marcaria era uma construção escura que desafiava suas lógicas juvenis: uma ponte composta de duas torres, cabos de aço e muito concreto. Ela ligava ilha e continente e era tida como o cartão postal daquele lugar. Tão linda e incrível que não tardaria em ocupar seus corações.


Naquele momento, o som do vento seria a única companhia daquelas almas se não fosse a fila de carros e buzinas que se formava atrás da Kombi, seguidas de gritos e xingamentos de pessoas que há muito perderam a capacidade de observar e contemplar. 


Pobres homens esses, que ignoram a beleza de sua própria cidade.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Aprendizado


Ele iria lembrar daquele momento por diversas vezes em sua vida...

"Mar crespo e vento forte. Quatro remavam e um ia ao timão, guiando o barco. Faltavam ainda uns seis ou sete quilômetros até a costa, e o sol alto manchava suas camisetas com suor. Estavam esgotados, mas não queriam ficar em alto mar.

Ele, em especial, dava seu máximo. Os outros apenas passavam os remos pela água; esperando. Ao sinal do timoneiro, entretanto, entenderam tudo. O leme ia a direita, mostrando quem realmente se esforçava ali.

Em uníssono, os demais a bordo pediram desculpas. A distância, a partir de então, já não assustava mais."

E assim é a vida, pensou.

As vezes é melhor deixar com que as pessoas percebam seus erros e atitudes do que cobrá-las por falhas.

Simplesmente não vale a pena.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Conexões


O dia de Marcos seria cheio.

Chegaria ao trabalho e logo cedo leria as notícias matinais, indispensáveis, como acreditava, para qualquer um. Avesso a veículos sensacionalistas, deixaria de lado assuntos ligados à vida de "celebridades", mas estaria ansioso para ler a tão aguardada matéria de capa da revista mensal.

Lá pelas 10 horas, provavelmente conversaria com Júlio, seu melhor e mais fiel amigo. E o assunto seria o futebol, como em quase todas as segundas-ferias. Daquela vez, o time de Marcos haveria vencido o de Júlio, e este teria que aguentar um longo deboche de seu então rival.

Mais tarde, se realmente quisesse almoçar, Marcos teria que ignorar uma série de clientes, que, chatos ou não, seriam importantes para os negócios. Depois, teria poucas horas parar fazer o muito que sua profissão exigia. "Ócios do ofício", como diria.

Se sobrasse algum tempo, faria questão de ver Camila, uma linda morena que há muito habita sua mente e coração. Dona de olhos verdes provocantes e de um sorriso fácil, ela alimentaria a esperança de seu admirador, ganhando maior tempo para decidir o que realmente quer.

De fato, aquele seria um dia de fortes emoções.

Quando chegou na empresa, entretanto, Marcos encontrou uma sala sem luz e um computador sem internet. Nada pode fazer, assim. A não ser esperar sentado para se reconectar ao seu mundo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Suicída


Ele não estava feliz.

Entrou em um bar de segunda categoria e sentou-se no único banco livre junto ao balcão. Em seguida, pediu uma dose de sua bebida favorita e se pôs a pensar em todos os seus problemas, sem sequer olhar ao redor ou reparar no cheiro forte de cigarro que impregnava o ar.

Do seu lado, um homem de olhos fundos e barba rala pareceu notar sua expressão, dando início a um diálogo que mudaria muito. Que Mudaria tudo.

- Você alguma vez já pensou em suicídio?
- Não. Nunca!
- Pois acho deveria pensar. Eu, ao menos, penso todo dia.
- Mas por que disso?
- Porque sim.
- Mas não faz o menor sentido!
- Não estou pedindo para cometê-lo, apenas para pensar sobre.
- Eu só não entendo o motivo...
- É que as vezes pensar no fim mostra justamente pelo que é importante viver.

Sentiu como se centenas de Volts percorressem seu corpo.

Ainda em choque, bebeu em um só gole a bebida que estava em seu copo e sentiu-a queimar enquanto passava por sua garganta. Depois, saiu do bar pensando em sua família, amigos e nos sonhos ainda não realizados.

Pela primeira vez em muito tempo, pensou não nos problemas, mas no porque devia superá-los - quer fossem amor, trabalho, dinheiro ou saúde.

E finalmente viu que as coisas não eram tão ruins assim.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Evaporou


As mãos que amavam juntas e caminhavam dadas pelos mais belos caminhos.
O cheiro que tomava o ar e inspirava os passos sem temer nenhum espinho.
Os tons que pintavam o mundo e as cores todas lá de fora:
O claro da tua pele e a face mais bela do que qualquer aurora.

Eras meu alto e meu céu.
Meu riso e meu tudo.
E através dos teus olhos era muito melhor ver qualquer mundo.

Mas enfim um fim: evaporou.
Antes ar e saudade; depois medo e dor.

E se eu nunca mais me sentir daquele jeito?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Os dois lados de uma mesma rua


A valente e destemida luz do sol conseguiu vencer o bloqueio dos prédios e fazer brilhar os paralelepípedos irregulares que revestiam aquela rua. Eram sete horas da manhã de um sábado, e, junto ao amanhecer, soprava um vento frio e úmido por ali.

As calçadas opostas - tão semelhantes que sugeriam uma imagem espelhada - já trepidavam com o pulsar de alguns passos. Eram simples e feitas de cimento, mas capazes de carregar sonhos e saudades por muitos e muitos metros, de fazer decolar desejos e de destruir ilusões.

Não seria diferente naquele dia.

Subindo a rua, alheia a qualquer imagem ou som, vinha uma menina bonita mas de rosto completamente fechado. De lábios contraídos, ombros caídos para a frente e com passos tão miúdos que a faziam parecer ainda menor e mais frágil.

Ela não era adulta, bem verdade. Porém as linhas de seu rosto atestavam que aquela não era a primeira vez em que sofria. O motivo de sua tristeza era um dentre vários outros obstáculos em sua vida marcada por sulcos de dor e lágrimas, por provas de coragem e superação.

E ela continuava em frente.

Do outro lado, por sua vez, vinha um menino feliz. Descia a rua pulando e assobiando sua música favorita. Com os pés descalços e os tênis na mão esquerda, ria com o corpo e possuía um brilho ímpar no olhar. Era também bastante jovem e parecia mais humilde que os demais transeuntes.

Aparentava estar bastante leve.

Talvez ambos estivessem focados demais em seus dramas pessoais para compreender a beleza daquela situação. Eles iriam passar um pelo outro, isso estava claro. Poderiam trocar olhares, mas não muito mais do que isso, e não deixariam de ser quem eram ou de sentir o que sentiam.

Eram pessoas, duas histórias e duas formas distintas de ver o mesmo mundo.
Separados por uma simples rua.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Preto e branco


O lápis 2B deslizava suavemente pela folha branca estendida a sua frente, enquanto traçava linhas concêntricas e formava uma pequena espiral. Segundos depois, mudou de ideia. Riscou retas paralelas por sobre seu antigo desenho e mudou todo o sentido. Acrescentou algumas formas aqui e ali e distanciou-se do papel.

O artista por de trás daquela arte colocou uma das mãos junto ao queixo e franziu os lábios. Percebia que a intenção de sua obra - contemporânea, acreditava - se perdia proporcionalmente ao gastar do grafite. Ia ficando cada vez menos densa, cada vez mais simplória e, inevitavelmente, menos condizente com o seu verdadeiro "eu".

O contraste estava ali: nítido; as formas eram firmes e bem delineadas e os traços leves estavam bem distribuídos. Para um admirador pouco exigente, talvez, aquela seria uma bela e vistosa pintura, um lapso criativo. Para o pintor, entretanto, não era. Realmente faltava algo ali.

E num estalo - sem saber exatamente de onde, como ou porque - ele soube. E tão lógica era essa falta que tornou-se irracional pensar que ele pudesse tê-la esquecido. Era um silêncio gritante, como dizem.

Ou uma ausência em muito sentida.

O que faltava ali era cor.
E ele estava realmente cansado de pintar em preto e branco.