terça-feira, 6 de abril de 2010

E se meus dentes ainda fossem de leite?


– Passo! – falo sem muita firmeza.

O “flop” estava na mesa. Três cartas viradas e expostas para os três jogadores restantes. Tudo estava um pouco embaçado e envolto em fumaça, mas era possível distinguir um oito de paus, um valete de ouro e um rei de espadas. Cartas injustas para um jogo injusto.

Olhei para os lados e todos pareciam estar mais seguros do que eu. Rostos padronizados, compostos por um misto de frieza, certeza e confiança. Até onde eu deveria levar a serio a ameaça em suas expressões? Eu não sabia. Nunca havia jogado com eles antes e era, até certo ponto, complicado prever blefes. Uma das regras básicas do Poker dizia justamente para não confiar em demasia na face dos jogadores, mas...

Em mãos, dois “2”. E eu precisava fervorosamente que mais um “2” surgisse. Apenas mais um. Era pedir muito? Com uma trinca, por mais que a numeração de minhas cartas fosse baixa, eu pensava já ter o suficiente para vencer, para apostar alto e, quem sabe, sair dali com o prêmio ou ao menos ganhar mais fichas.

Só mais um “2” e quem sabe tudo se resolvesse. Irônico, pensei. E um breve filme de meu passado atingiu meus olhos: eu, ainda jovem, vislumbrando dois caminhos a seguir, dois caminhos que decidiriam meu futuro e que contariam a história de quem eu sou.

De um lado, meus dois melhores amigos, também jovens, livres, largados, preparados para sair pelo mundo. Ansiosos por serem enfim independentes, para deixarem seus pais, suas casas, escolas e tudo mais para trás. Apreensivos, portanto, para viver um dia por vez, sem certezas, sem cobranças, sem se preocupar com o amanhã – isso se houvesse um amanhã.

Do outro lado, dois amores. Minha primeira e única paixão verdadeira e meu irmão mais novo – os quais eu julgava nunca ser capaz de abandonar. Ponderando pesos e medidas, eles eram essenciais para mim, dois dos motivos principais que embalavam minha vida. Eu era jovem, mas realmente a amava, lembro ainda hoje da intensidade do sentimento. E quanto ao meu irmão, ele era a única razão sincera para que eu continuasse vivendo no mesmo teto que meus pais.

Voltando ao presente, o “Dealer” trabalhou novamente. Com o “turn”, mais uma carta na mesa, mais inúmeras combinações possíveis e mais motivos para que o frio percorresse a minha espinha de cima abaixo. Eu estava com medo. Precisava daquele dinheiro. E aquela dama de copas pouco ajudava em minha situação.

Em jogo, agora, uma dama de copas e um rei de espadas... Paralelamente ao jogo, minha mente era novamente aturdida por lembranças.

Eu tomei uma decisão e existiram outros amanhãs. Mas o que me fizera seguir dois desocupados, acreditar em seus conselhos, nas conjecturas de um futuro que nunca viria a acontecer? Como pude deixar o conforto, sentimentos tão reais? Como pude me tornar um bêbado que depende de jogo e de apostas para viver?

Na mesa, ninguém se atrevia a por mais fichas em jogo e o “Dealer” voltou a mexer no baralho. Dessa vez, iria virar a quinta carta, a que decidiria a última rodada de apostas. No âmago de meu ser, agora, eu sabia que a única coisa que eu queria mais do que aquele “2” era uma chance de voltar no tempo começar de novo.

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Essa crônica, se é que posso chamá-la assim, foi escrita para participar de um concurso do site "Portfólio Sem Vergonha", que propôs o tema "E se?" e deu liberdade total para se criar.

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